O sabão deslizava acalento de barriga. A língua d’água avençava o tronco pelo mosaico de azulejos verdes e seus renovos amarelos centrais, visto por retinas próximas e afastadas; tais quais as minhas. Paredes trampolins e falta de gravidade por entre os vasos vagas de garagem. Um mundo cheirando a rodopios acrobáticos, sabão, e banho de mangueira. Até minha chegada, precipitada pela falta de freio. Seu corpo desajusta a força, ultrapassa a fronteira de mosaicos, e alça voo pela rampa da garagem. Sentiu roçadura da pele nas costelas, escarificando-a enquanto o cimento comia o orgulho de colher. Vi com olhos que não tenho o portão abraçar seu tronco escoriado. Aspirei o sangue mesmo sem nariz. Ele, por sua vez, parecia-me uma tartaruga virada.
Tateando seus restos me aproximei, sem anúncio. Primeiro tentou pedir socorro, mas a voz timorou. Vagarosamente o palato ao invés de ar, arrecadou um soluço cândido lacrimoso. Olhos que se enchem, mas se secam por minha culpa. O cimento perde a cor, as gramas que fazem fronteiras nas lajotas somem; a rampa matadora se desfoca até virar nuvem de tristura. Um último fio d’água rola através de mim. Me aproximo outro passo levando comigo azulejos e vasos. Paredes e teto da garagem vão em seguida; são mais pesados por isso tomo mais tempo; em contrapartida contorno o destino com mais força. A tartaruga segue virada, imóvel. Não há mais nada, apenas seu corpo raspado, sozinho e sangrando. Ninguém apareceu.
Sua voz lhe falha, eu o abraço.
Da morada que ali levantei, se fez o mundo ao redor.
Dos que não apareceram ao portão, nem ao menos para fingir espanto com a tartaruga do avesso, duas figuras que lhe importavam estipularam uma distância ainda maior ao longo do tempo. A primeira, não passava de uma azul, perdida moça pós século dezenove. Proibida de usar roupas brancas, herdou como estampeiro o tempo, que lhe dava um aspecto de camuflagem aos braços armas de arremessar vasos e carinhos amenos.
A fiação verde passividade das veias cruzando suas pernas, pareciam apodrecer nas bordas. Mais externamente possuíam um aspecto cinza escuro de uma prematura saudade envelhecida. Na extremidade interna, um tom mais claro aos poucos destruía o que se esquecia.
Onde ela estava quando o portão estalou era um mistério. Ao passar dos anos descobriu que a probabilidade seria estar escondida, mimetizando o canto da parede, de portas fechadas e chorando, escondendo-se do cartesiano, e livrando-se assim da vergonha. Todo cansaço absorvido pela teimosia involuntária da espera em vão, a tornava uma mãe sem filho, e vicejava menos que um abraço embebido em azul dureza. Acostumou-se a vê-la soterrada pela sombra de um vestido preto, marrom, ocre, e de tons cinzas, como suas pernas.
Vez em quando, ao som de um suspiro, na ausência do filho, eu apagava as luzes enquanto ela soluçava.
O pai; uma serpente amarelo esverdeada que passava os dias encostado em um tronco de Der Goes sem folhas da mesma cor de sua pele, em tom mais escuro. Dono de dutos biliares espessados, seu sangue possuía uma cor epidérmica. Vestia-se de Cronos extinguindo o sol em um eterno calar, sem futuro ou esperança. Os acordes cromáticos de seus braços transitando entre verde de extremidade preta, mesma cor da extremidade direita, do braço em cor amarela. Nunca deixava-se ver de frente, apenas a sombra lateral nos cantos dos olhos e uma voz açoitando a consciência. Os passos longos e vagarosos, adestravam o pânico. Banhava-se em si mesmo, crescendo por entre trocas de pele a cada conjunto de ideias auto indulgentes. Seus falsos dentes rangiam tal portas envelhecidas que escondem martírios, mortes e maldição. O dono de algo que não existia, mas prendia toda uma casa ao redor de seus dedos, até o momento em que decidia estrangular a vida. A picardia de minha presença só se fazia notar, quando os torniquetes paternos esvaziavam o viver, até sobrar apenas eu.
O velho amigo do filho de cor acinzentada.
Existem dinâmicas dentro das amizade de longa data que destoam das simples sensações complexas. Não apenas moldes de amor, companheirismo ou até mesmo salvação, aclaram os cantos semissecos vividos. Existem formações mais internas que nos moldam como indivíduo pelo resto de nossa existência. No meu caso, foi a nicotina. Muito antes de amparar as costas rasgadas pela rampa da garagem, o pai apresentou-me ao que em pouco tempo entendi ser a rotina imposta.
Enquanto a pele paterna amarelecia durante o café da manhã, inexistia frescor de memória ao vê-lo despejar na xícara de café dois goles adúlteros de uma bebida destilada com cheiro manco. Poucos segundos depois que seus olhos clarificaram-se, tal raios de sol fluindo pelas ramificações vítreas de uma janela matinal, o amarelo da pele assentava-se. O pai sorria com a mesma velocidade do cerrar os dentes, ao ver o filho aproximando-se. Ressoava em seus cíngulos, apenas a vontade de fazê-lo um macho. Montar a vida e pisoteá-la por qualquer custo que lhe fosse imposta. Tornar-se um homem rico, evidente e incólume; mesmo sem ter a certeza de qual lugar ou de quem era esse seu desejo anelar. Apenas estava lá, como a invariável vontade de fugir, assim que o filho lhe dava o primeiro bom dia. A invariável vontade de acender um cigarro e transpor aos pulmões pré-adolescentes a essência da masculinidade em setenta por cento de tabaco processado. Estava inalcançável a fuga, mas o maço de cigarros não. Acionando o paternalismo enrolado em seda manufaturada, o homem chegando em meia idade, liquidifica a fumaça tornando seu corpo ainda mais amarelo. Ao ver o menino com o rosto em alvorecer inchado depois de anoitecer marcado, exala fumaça como um troféu. Apaga o mínimo pelo fundo da xícara, resvala no maço, descuidando-se em manter no ar apenas mentiras salpicadas e não recobrindo toda a toalha de mesa, acende outro cigarro.
Eu, entremeio ao filho e o pai, vejo o coto do primeiro cigarro alçado ao chão. A mão que rapidamente vai ao pescoço de meu amigo de longa data, sufocando uma ameaça também eclodiu uma surpresa. A ameaça foi clara; ele deveria apanhar mais na escola pois a mãe não poderia desconfiar de que aquilo tudo em seu rosto era familiar. A manga do uniforme levantada, o segundo cigarro apagado na curva interna do ombro, e os restos novamente arremessados no chão da cozinha. O pai levanta-se, toma mais um gole do café alcoolizado. Sai. Meu amigo engolindo-se apenas olha os restos dos cigarros ao chão. Amparo suas mãos; não somos tão íntimos ainda.
Suspiros mórbidos enquanto ele reflete se é necessário apagar os vestígios também da presença do pai ali. Não me causa espanto algum enquanto comemos as bitucas de cigarro jogadas no chão. Molhando os dedos com saliva, lambemos os restos das cinzas. Eu já de mesma coloração não me importo. A nicotina tornou-se parte de minha construção desde então. Do mesmo modo que as lentes corretivas marcaram meu destino…
Nota: Ferrorama é um conto em partes, que depois será publicado em sua totalidade. Decidi dividi-lo pois sua segunda parte está escrita ao contrário, então para que o efeito seja mais visível do experimento resolvi fazer deixe jeito.
A segunda parte de subtítulo: Colocação das pilhas deve sair semana que vem.
Nossa, você me lembrou uma frustração de infância: nunca ter ganhado o presente dos sonhos que era um ferrorama.