Os três troncos de madeira a compor uma moldura, tal qual três baluartes compõem um acorde, se posicionavam camuflados de berço enquanto janela; aberta e sem vidros, onde ele no lado esquerdo encostado estava. Chapéu de couro arredondado na cor tangerina de outrora, camisa listrada; em suas mãos uma viola. Junior repousava calças amarelas no batente da janela, marulhando as pernas que levemente alentavam Almeida, mulher qual só sabia o sobrenome. Moradores recém-chegados ao casarão saudoso de sapê, local de longevas paredes exibindo suas intimidades temporais por entre as fendas dos tijolos; fendas tais quais veias nos gomos da fruta azedoci ninada pelas mãos da mulher naquele presente.
Almeida tangia mãos por entre os encordoamentos de um pano de prato bordado em vermelho, ajustando jungido ao entardecer sua camisa onde pássaros pontos brancos contrapunham-se ao marrom de sua saia. A trama era quase tal cor como as paredes da viola, por conta de um tingir natural contido no nascedouro que não as sementes dos tijolos desnudos formando base à janela de madeira, mas pelos pequenos riachos dos sucos ressoantes do refrão cantado por Junior que escorriam certeira quantidade, resoluta em chegar até os dedos do violeiro pelos sulcos de suas mãos; desposando-se da madeira em direção ao batente da janela. Na curva da viola, Almeida esperava segurando uma das pontas do pano, quarando os riachos enquanto uma pequena casca de cor laranja por entre seus dedos resplandecia uma eternidade; casca curva como a madeira musical, luzindo ângulos que se moldavam aos dedos dela, contrapondo seu tão alvo interior às pequenas falanges queimadas em suave sol. O suco, a casca e a pele da mulher que cantava suas mágoas enterrando pequenos bagaços do passado.
Os dois entre olhos se deixavam levar pela tarde, gomos dos tijolos aparentes reluziam suas vênulas brancas; gêmeas das pertencentes a outros gomos residentes por entre os dentes de Junior, a lhe sorverem líquido enquanto apertava a carne alaranjada, que tentava lhe escapar moldando uma armadilha de morder lábios. Dia diluindo compassos vagarosos do tempo descascando a argamassa amarela da parede. Enquanto Almeida solava a canção, ao solo lançava suas cascas de mágoas; retiradas por entre os dedos da tangerina circular mansa a dormir por entre suas camas mãos, e, ao serem expatriadas do corpo circular explodiam uma fumaça que acoutava os olhos de Junior, fazendo-o apertar tanto o acorde como o gomo em sua boca. Ao ajeitar seu chapéu, roçou a mão em seus lábios e o mar laranja revoou ao braço da viola, brilhando as cordas, que alumiaram o sorriso de Almeida, feliz como uma branca flor recoberta de pistilos dourados, pois retirou todos os pesares do peito ao descascar a última redondilha. O emaranhar da simplicidade, construindo menções por entre as fibras da fruta mambembe era como deveria ser o horizonte assim como o agora; repletos dos sons explosões de vida nas cordas de Junior e das canções de Almeida. Serenar o destino enquanto o tempo transpassa o mundo de forma inegável, tudo isso embebido nos soros de um amor. Daqueles maiores que o destino, capazes de transpor fronteiras inteiras, mesmo que seja apenas um atravessar de rua.
Enquanto o solo recolhia bagaços, cascas e sementes lançadas ao ar, a rua, em terra, ampliava os percalços do caminhar por conta de seu esqueleto sulcado e marés onduladas, as quais se tornam morada a novos inquilinos lançados no ar em forma de nobres gases quando do descascar das tangerinas. Eram imigrantes esperançosos em caldearem-se por entre o tempo transmudando-se como parte de um todo ao final do trajeto, iniciado no alçar voo das mãos de Almeida até a chegada em vários montes daquela rua em terra.
Viagens prenunciadas pela mulher a cada novo portal almiscarado de casca que alcançava em suas mãos, ou ainda no hálito em claves de Junior.
Nos sulcos do solo, os novos habitantes expandiam morada aromática, unindo seus cheiros de esperança aos de segurança que só uma nova casa completa por união pode proporcionar. Alguns vapores mais audaciosos, cambaleavam pelo ar como trapezistas interpretando uma nova lei da gravidade; rodopiando enquanto assoviavam as canções do violeiro, passadas pelos ancestrais nascidos do hálito. Esta vanguarda utópica do cheiro, herdeira do mundo, expandindo suas canções ao longo da rua, anunciou uma criança pelas mãos. Rodopiava no canto do olho de Almeida, desde suas primeiras piruetas lá pelas esquinas das horas; veio pelas mãos dos novos imigrantes que lhe sopraram às narinas maravilhas da vida, era odorado ouvinte de flautistas que lhe contavam fragrâncias do amar desapercebido, àquele que nasce como se fosse nascente da alma que se aprende sem saber. Em contato com o ar, intrépidos imigrantes e suas novas vivendas expandiam o mundo de uma criança de alaranjar da terra, sucos, cantigas e amar cheiros.
Quem dobrasse os sonhos naquela esquina poderia alcançar todos esses olores trapezistas das tangerinas que rodopiavam pelas mãos de Almeida e terminavam dançando por entre os dentes de Junior. O dia claro de outono, amadeirado tal qual uma perna de artista que rodopia, enchendo a vida de vida. Os dois na janela, a criança tiquetaqueando sorrisos por corridas descalças, as cascas abraçando cada uma das tonalidades de cores e construindo um mosaico de sorrisos que era atravessado pelo sol da tarde, reluzindo tal qual interior de catedral. Era uma vida caminhando em cada pequeno gomo como se esses fossem revelações da alma a construir felicidades, o que não seria impedimento para que as traquitanas aparafusadas pelas tangerinas na criança, tomarem de assalto o chão batido com uma traquinagem. Vagarosamente como fiapo que se aloja por entre a última curva da gengiva no pedaço mais suculento, foi de tatibitate em tatibitate aos pés de Almeida, e, ao sentir a casca cavucar sua palma, deu o golpe. O canto do gomo na boca de Junior soou o alarme, mas já era tarde, partiu uma tangerina que cresceu para se tornar bola de futebol.
E como era sabida essa menina; pois nasceu fruto, mas sempre soube ser tangerina. Rodopiava balé traçado por entre as canelas da criança; fingia direitar e sapeca que só acelerava uma esquerda libertária; a criança desenhava em seu entorno risos que se fundiam aos cheiros liberados em cada volta daquela menina Tangerina que agora imitava o movimento da Terra, uma estrela de rereluz maior que o sol, assim minúsculo, por estar tão perto de uma Deusa. Junior entoou acelerações na viola e gomos velocistas trepidavam trajetos na velocidade da luz em sua boca, ao mesmo tempo que Almeida reconheceu o surrupio, nem por isso deixou de acompanhar o refrão com as palmas cada vez mais laranjas. A esfera rodando pelos pés da criança, criando universos se preparava para alçar seu voo derradeiro sorrindo. A criança então afasta seu pé esquerdo e ao lançar o foguete tangerina nem há tempo dela alçar voo depois do teto.
Sequestrada sem mais nem menos pelos pés de um homem de terno, tornou-se sombra esmagada pelo normativo dito moral; sisudo como enxaguante bucal, daqueles que são feitos de lava líquida.
O que parecia ser o fim da vida de menina Tangerina foi ideia equivocada do senhor de terno sem cores, que como todo homem de terno sem cores equivocado, carecia entender que a vida nunca acaba. Qual que tal uma roda, um planeta ou um fruto redondo, a vida gira ao redor de si mesma e de todo o Universo. Mas homens de terno sem cor equivocados não entendem a vida, ou o Universo, muito menos uma Tangerina. O que não os impedem de tentar por milhares de sinas atravancar o refrão ou destruir o amor, seja ele em cheiro, sabor ou tato. Como todos, este específico homem de terno sem cores quase como um rinoceronte mecânico abaixou-se, alcançou a menina dando-lhe piparotes em seus braços, dependurados tateando a sola do sapato por socorro, e sem mais delongas arremessou-a tão certeira quanto bala de canhão no meio do peito da criança, quase lhe zunindo uma queda da própria altura.
O silêncio estapeia o tempo.
Almeida mais horrorizada por estar menos espantada com a atitude do sujeito, descansa as tangerinas que se agarram na madeira da janela, apavoradas. Os cheiros se abaixam e o trapézio fica suspenso no ar, enquanto Junior procura em algum canto dos olhos um ensolarar que lhe guarde. Não acha; apenas o gomo da boca encontra uma lágrima. A criança segue impassível no meio da rua; Tangerina assassinada agarrando-se ao que lhe resta de amparo no lado esquerdo do peito daquela infância que de alvo, passou a ser o que lhe manteve resguardo. O rinoceronte mecânico ao mostrar que a truculência estraçalha sonhos raspa as patas no solo, esmagando instalados imigrantes de outrora canções entoadas naquela tarde. Um homem, nada além de um mísero homem, fora necessário para que os aromas tangerinos depois de tanto cantarem seus voos, chegadas e amores, voltassem ao medo suspenso; de mãos dadas ao violeiro e sua Almeida rezavam baixinho para não se desfazerem através do descortês ar. Um homem apenas foi necessário para atirar no peito daquela criança um ódio; não qualquer ódio. Ódio. Que é uma gota de não nascente, daquelas que sempre ficam à beira dos braços da poça, vestidas em coloração de caligem, recusando qualquer convite para banharem-se com suas irmãs cristalinas. Não sentem que o desamparo nelas plantado não é definidor de caráter, mas trauma; então apenas conseguem enxergar outras gotas de ódio que ao redor da poça limpa juntam-se em braços. Um círculo ovalado que visto ao longe parece uma tangerina de casca podre, aos poucos engrossando e deformando-se. Pestilenta mancha disforme, duplicada, triplicada e quadruplicada em seu tamanho, começa a devorar a poça limpa, arrancando-lhe todo rutilar pelo cheiro sujo de sangue das bocas infinitas desse novo ser, que semelha um osteosarcoma carcomendo o osso de um cão de infinitos sorrisos. Esse Ódio. Maldito câncer que tentava corroer o peito daquela criança abeberada pelos restos da menina Tangerina. Maldito matador da esperança. Maldito seja esse homem.
Entretanto, como todo homem de terno sem cor, equivocado, e, semelhante a um rinoceronte mecânico que destilava osteosarcomas ódio em cerração trevas, mal sabia em sua inodora sabedoria oca, que era chegada sua hora. Os cheiros que rezavam de mãos dadas a Junior e Almeida se entreolham fechando os olhos. No meio da rua, os que estavam instalados escondidos em suas casas abrem persianas; na mesma hora o violeiro reconhece o refrão sussurrado por eles. Imediatamente, sorvendo seu gomo ataca as doze cordas de aço relâmpago. Almeida candura abraços nas frutas carinhosamente e canta com os cheiros enquanto alimenta o coral descascando novas tangerinas. Os gases salteiam diretamente pelo trapézio e a canção segue o movimento do asfalto, caminhando em procissão até encontrar o peito do menino e a menina Tangerina. Envolvem os dois em um abraço enquanto eles cerram os olhos. Lentamente amalgamam-se à capa de aromas, que agora inverte seu caminho pela vida. Os cheiros, ao envolverem os dois seres atacados se tornam cascas, formando uma couraça a proteger-lhes. Junior e Almeida gorjeiam junto as frutas em pulmões plenos, usando toda força que lhes resta.
As cordas da viola em dor ameaçam romper, mas o suco dos gomos as lubrifica, tornando os acordes sônicos. A casca carapaça se molda em galhos cada vez mais troncos; nessa hora o menino e Tangerina não mais se diferem dos gases, cheiros ou cascas, são todos um enorme pé de tangerina quase do tamanho da casa. Muscular, a nova árvore bamboleia estrofes em oração, dançando com a rua que sacode o maior medo do ódio destilado pelo homem; a Vida irá desfilar inteira na sua frente, zombando de como pode uma gota suja dessas desejar matar tamanha beleza do amor ferro fundido em brasa entre os seres do Universo. Esse tipo de homem morre apavorado por imaginar ser tocado por tamanho cheiro multicolorido de paixão, agarrando-se ao arremedo de um cartesiano tão cheio de vazio que se chega a torcer o peito para dentro de si mesmo, esperando se tornar Narciso coerente. Não terá tempo nem de completar tacanho raciocínio, já que um dos troncos da nova árvore o pega pelos pés, colocando-o de ponta cabeça como todo tirano deve ficar; chacoalha como milonga aquele projeto de gente mal-acabado e nada cai, nem o chapéu. Desesperado pede perdão, mas a Vida não perdoa o dissabor deste imensurável desamor; é lançado como torpedo para longe, tornando-se uma exclamação que aos poucos vira ponto e vírgula; chegando ao horizonte nada mais que um tracinho ou nem isso.
Mas o silêncio ainda persiste. Árvore parada parece pensar protelar alguma nova ação. Apenas um som mudo reflete os salvadores cheiros. Ouve-se um ranger de cascas abrindo-se como portas, ao mesmo tempo que Junior e Almeida prendem os ouvidos. No meio do caule principal da planta recém-formada dois enormes pedaços da madeira se deslocam abrindo caminho aos dois seres protegidos até então dentro em seus galhos. O menino e Tangerina abraçados num laço juntamente com os ramos internos da árvore, porém, os olhos das laranjas e dos humanos estão colados na antiga menina, agora mulher feita, gestada pelas folhagens em um útero vegetal lenhoso. Sai cheirando à fruta que lhe destinou nova vida, dançando aos acordes do violeiro que encostado estava do lado esquerdo de uma janela aberta, sem vidros, camuflada de berço construído por três baluartes compondo um acorde em moldura composta por três troncos de madeira.
fim.
O quadro que inspirou a montagem do plano e do conto foi “O Violeiro”, de José Ferraz de Almeida Junior. Um realista que no último ano de vida, antes de ser assassinado pelo seu próprio primo, pintou em óleo essa cena no caminhar de 1898.
Outro fato que inspirou o conto foi um episódio que aconteceu quando eu ainda menino tomei um tiro de manga, arremessada no meio do meu peito por um menino que via no atirar coisas para dentro da casa de meu avô um esporte.
Maurício de Sousa tem uma versão que não está no acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, como Almeida, mas pode ter residência em seu coração:
Nota: O conto nasceu por conta de um exercício de escrita com origem no poema “O Cheiro da Tangerina”, do Ferreira Gullar:
O Cheiro da Tangerina
Com raras exceções
os minerais não têm cheiro
quando cristais
nos ferem
quando azougue
nos fogem
e nada há em nós que a eles se pareça
exceto
os nossos ossos
os nossos
dentes
que são no entanto
porosos
e eles não: os minerais não respiram.
E a nada aspiram
(ao contrário
da trepadeira
que subiu até debruçar-se
no muro
em frente a nossa casa
em São Luís
para espiar a rua
e sorrir na brisa)
Rígidos em sua cor
os minerais são apenas
extensão e silêncio.
Nunca se acenderá neles
- em sua massa quase eterna -
um cheiro de tangerina.
Como esse que vasa
agora na sala
vindo de uma pequena esfera
de sumo e gomos
e não se decifra nela
inda que a dilacere
e me respingue
o rosto e me lambuze os dedos
feito fêmea.
E digo
- tangerina
e a palavra não diz o homem
envolto neste
inesperado delírio
que vivo agora
a domicílio
(de camisa branca
e chinelos
sentado numa poltrona) enquanto
a flora inteira
sonha à minha volta
porque nos vegetais
é que mora o delírio.
Já os minerais não sonham
exceto a água
(velha e jovem)
que está no fundo do perfume.
Mineral
ela não tem no entanto forma
ou cor.
Invertebrada
ajusta-se a todo espaço.
Clara
busca as profundezas
da terra
e a tudo permeia
e dissolve
aos sais
aos sóis
traduz um reino no outro
liga
a morte e a vida
ah sintaxe do real
alegre e líquida!
Como o poema, a água
jamais é encontrada em estado puro
e pesa nas flores
como pesa em mim
(mais que meus documentos e roupas
mais que meus cabelos
minhas culpas)
e adquire
em meu corpo
esse cheiro de urina
como
na tangerina
adquire
seu cheiro de floresta.
Esse cheiro
que agora me embriaga
e me inverte a vida
num relance num
relâmpago
e me arrasta de bruços
atropelado
pela cotação do dólar.
E não obstante
se digo - tangerina
não digo a sua fresca alvorada
que é todo um sistema
entranhado nas fibras
na seiva
em que destila
o carbono
e a luz da manhã
(durante séculos)
no ponto do universo
onde chove
uma linha azul de vida abriu-se em folhas
e te gerou
tangerina
mandarina
laranja da China
para
esta tarde
exalares teu cheiro
em minha modesta residência)
jovem cheiro
que nada tem da noite do gás metano
ou da carne que apodrece
doce, nada
do azinhavre da morte
que certamente
também fascina
e nos arrasta
à sua festa escura
próxima ao coito
anal
ao minete
ao coma
alcoólico
coisas de bicho
não de plantas
(onde a morte não fede)
coisas de homem
que mente
tortura
ou se joga do oitavo andar
não de plantas e frutas
não dessa
fruta
que dilacero
e que solta
na sala (no século)
seu cheiro
seu grito
sua
notícia matinal.
Nota 2: Aliás, a história de como Gullar escreveu essa maravilha é uma joia.