Os primeiros acordes passíveis de audição, já que durante toda semana a canção com mesmo nome do café tocaria inadvertidamente sempre, pausavam o ar. Só não onipresentes pois sobrepostos estavam pelos deslizares residentes daquele ósculo úmido, que, menos por surpresa mais por pura traquinagem, Amanda reluziu nos lábios de Érika, esta, movida pela certeza desde o primeiro dia no qual se encontraram sobre o que acontecia naquele momento. Mesmo que não falasse, consciente estava do silêncio proclamando o saber. Não há necessidade de complexos estratagemas cognitivos para que se tenha a certeza, visto que da formação de complexas frases justificadoras de suposto amplo discorrer sobre mero quinhão de conhecimento, nada mais sobra além de um ruído disforme. Não precisava dizer, estava tudo ali, na forma como era possível ouvir a pele antebrácica de Erika descolando-se através da menina do bar Travessia, quanto de seu quadril redobrava o atrito de escorregamento por entre o ventre translúcido dela, desencadeando deslumbramentos nos joelhos enovelando-se, seu tênis vermelho, tal qual os cabelos de Amanda, pareciam contrapor-se de maneira inequívoca as paredes internas do café, tão verdes quanto as folhas das árvores paralelas ao meio-fio, por onde ao certo escorreria tal amor fundante, alocando-se em novas raízes polinizadas através da água que desembarcaria pela chanfradura na extensão da rua, no limite do asfalto. Não era preciso palavras já posto tudo equalizado matematicamente tanto quanto as rachaduras da parede de cimento, local que o desejo de Erika apoiava a perna esquerda fechando as pálpebras. A Travessia de Milton ressoava à distância de um milésimo de segundo contado do avesso.
Com olhos completamente fechados, Amanda poderia discorrer por horas sobre como a água descendo pelo calçamento sonorizava cachoeiras desreguladas em pontos distintos onde pedregulhos recobravam consciência ao banharem seus rostos marejados por lágrimas que vertiam cores distintas. Eles sorriam para o mundo esperando que o mundo sorrisse de volta, assim como velhos garotos fazem. Sabia obviamente, por conta de toda uma lógica, que as pedras inverteriam polaridades reverberando agudos tons líquidos, construindo conversas sobre como aquele beijo tiquetaqueava a cada toque das bordas, seguido pelo escorrer lateral da língua despindo flores dos incisivos, delicadamente pressionando a lateral na boca de Erika contra seus lábios emudecidos naquele longo beijo de Amanda, ela, que seguia seu curso enquanto apoiava sua perna esquerda naquela parede azulada. As mãos descendo pelas laterais, apertam mais O beijo de encontro ao céu, os olhos refletem duas colunas de lavanda, destilam as curvaturas epidérmicas da sua nova capitã de lada, sabendo que cada segundo ESTE Beijo se tornaria uníssono, desdobrando-se em milhares de nuvens que retornam amendoadas aos rebordos DESTE BEijo, jamais ensaiado, apenas existindo, exibindo de maneira inequívoca um desejo em trovejares que alagam todo o calçamento e na esquina rebatiam ao final da parede amarela, aquela que Amanda recostava sua perna esquerda, abrindo levemente a pálpebra direita para poder olhar as mudanças caleidoscópicas do cimento durante AQUELEBEIjo contínuo, longo e cada vez mais apoderando-se da vida daquelas duas mulheres, distanciando o tempo cartesiano dos segundos necessários PRAQUELE BEIJo. Amanda tão feliz que em dado momento reflete sobre como poderia morrer de alguma doença grave fulminante ali mesmo, como se fosse apenas permitido a ela uma sobrevivente vírgula nesse sorriso aberto que nascia escondido pelos encantos NAQUELE BEIJO, por onde o ar da respiração era expulso com violência para que as bocas jamais perdessem seus pedaços. Dedos, apêndices da língua redobram mechas de cabelo prendendo-as no rosto e agora são galés no oceano, residência do farol avermelhado que sorria a cada troca de saliva e as embarcações reluziam iluminuras atracadas no cais daquela parede alaranjada onde Amanda apoiava a sua perna esquerda. Seu corpo sonoriza encostas enquanto sente os seios de Erika no ninho feito por suas palmas de almas andarilhas descendo pela rua como aquela enchente destroça o asfalto, tão dura quanto Amanda está agora nas coxas cordas de Erika, sólida como o desejo de estar exatamente naquele lugar, pulsando a vida que flutua por entre os acordes da canção de Nascimento, que mesmo dizendo precisar se matar faz fundo para que ela tenha a certeza de que o raiar seguido dos dias a colocou no mar exato, pois podia sentir a água em toda plenitude.
Não precisava tentar convencer alguém que a vida vale ser caleidoscópio embebido em torneira infinita, que ao ser aberta fluiria pela eternidade tudo aquilo que se podia viver; não mais definhará toda a vez que tentar compreensivamente dissuadir alguém sobre o amor não se deslocar tal qual equação, pois ele aprende a voar naquela torneira fechada violentamente com claro objetivo de ser catapultado por mãos que se colidem por entre corpos. Nascedouro de um beijo, nascedouro de dois, inúmeros percorrendo totalidades, claridades e cores. Ela estava viva e nem ao menos percebeu quando inadvertidamente uma de suas sinapses escapou da correnteza e imaginou Otávio fechando a torneira, lhe dizendo que estava louca e que depois teria de limpar toda aquela sujeira. Isso ocorreu ao ouvir Milton cantar a tristeza de alguém que foi embora fazendo noite seu viver. A parede onde apoiava sua perna esquerda perde a cor.
Era impreciso tentar qualquer discorrer sobre a motivação deste ocorrido. Amanda poderia por milhas alumiar as interrogações que nasciam tais quais coletores de energia eólica vertendo o ar naquele mesmo asfalto onde a água encadeava ondulações, mas nada seria passível de entendimento; era uma muralha que se erguia diante dela e o máximo de movimentação que poderia fazer seria nada mais do que uma precipitação de suspiro, e mesmo assim Erika jamais deveria perceber; pois as lembranças sobre Otávio que assolavam seus murmúrios lisérgicos durante o então agora beijo, formatavam melancolias tão profundas de intensidade honesta ao ponto de fazê-la desnudar um limite de choro logo a frente. Em pânico pela certeza do deslizamento chegando rápido por entre os olhos de sua parceira de lábios, no momento exato onde Amanda deixaria transparecer toda a tristeza de relembrar o quanto ainda sentia algo muito forte por ele; ao mesmo tempo que adentro do silêncio enxergava o rosto do homem distanciando-se enquanto repetia por meses e meses sem passar um segundo sequer do plongée, o quanto ela era tudo aquilo que ele queria na vida, porém, jamais poderia permanecer já que o medo da vida esmagaria por todo sempre qualquer movimento que os levasse ao caminhar juntos; e que por isso restava a ele apenas fugir sem ao menos explicar de forma coerente porquê:
Era a vida, medo da vida, a vida em medo, o medo em vida da vida o medo da vida sem medo que dá medo, era o medo pela vida que dava medo da vida, era o medo, do medo, do medo, do medo da vida que dava medo. Era só. Ela só;
Apavorada por mais uma vez ser abandonada, sem saber se o fugir dele era covardia por ter medo do desamparo ao assumi-la como verdade, se o fato de se terem definitivamente desencadearia o pânico por não ter mais um tostão de controle sobre a vida projetando-se em rolos de filmes sem sequência lógica, ou se Otávio era incapaz de lidar com isso, por ser simplesmente, um homem. Um pedaço indelicado e incoerente de homem branco que não tinha por anos a fio a capacidade de entender quem era, como era, e ainda pior, jamais conseguiu se desvencilhar do ciclo de violência de tantas estações pois vivia anacronicamente dentro do passado e por lá confortavelmente ficou. O desamparo como meio de acalento, a incapacidade de tentar viver para além das paredes do apartamento sempre dissecadas sangrando, escondido como o covarde que era. Ali, naquele momento travando tremores, Amanda jamais seria capaz de saber e nem ao menos poderia desabar, esperaria pacientemente as cores da parede sobreviverem por auxílio mecânico, enquanto a ex-namorada de Otávio ainda lhe beijava de forma tão desprovida de ornatos, contudo, imparagonável rebentar de maravilhas d’alma.
Já não há mais a voz de Nascimento, os acordes do violão ninam o caminho da segunda estrofe enquanto Erika repensa por segundos sem pressa que caminhar é um não lugar. Ter deixado Otávio era uma questão tão bem equacionada para ela, que jamais poderia imaginar toda aquela contenda fantasmagórica assolando Amanda, seu novo amor que apoiava a perna esquerda na parede ainda sem cor.
Campear por entre objetos perdidos do tempo, o incessante insistir precisar chegar em desconhecido território nada mais era que a busca estéril por um ponto geográfico. Grassar-se pelos dias seria mais válido à sensação de estar vivo do que literalmente equacionar objetivos de locais. Andar é enfim viver, e isso Erika tentou mostrar a Otávio enquanto estiveram juntos. Não adiantava ter toda uma existência planejada em tomos e pílulas se ir à vida estava fora de cogitação. Inexplicável um calhamaço de regras, estatuto de comportamento, métodos e meios de realizar tarefas de forma lógica e meticulosa sem a menor cogitação de respirar. - Eu tentei em vão, pensava rapidamente ao assalto de uma memória. Os avanços da terapia completamente destituídos de sabor por não poder permanecer feliz sem pensar que não merecia, criando assim uma paranoia, uma nova sequência metódica dividida em números que somados deveriam obrigatoriamente dar a raiz quadrada de dezoito mil quatrocentos e noventa e seis. As mentiras sobre felicidade, embeberadas por sorrisos mancos precedentes de potentes xingadelas, muitas vezes feitas escondidas nas ruas, falando sozinho, e negando, toda a vez que ela o viu fazê-lo e depois o confrontou. Sem a coragem de lhe dizer que não mais havia amor, Otávio nunca deu espaço para que ele mesmo pudesse deambular encontrando seu caminho e deixasse Erika livre, pois ela amava-o de verdade. Era sempre uma chantagem, algo que a prendia em círculos de codependência; fosse o cachorro, uma doença imaginária ou simplesmente períodos de carinho e cumplicidade até o momento em que Erika esboçasse o mínimo arcabouço andante, quando então um novo extorso nascia. Agora, diferentemente da canção quando ele foi embora jamais fez-se noite o viver. Ela era forte como a letra de Nascimento, mas do contrário, teve jeito e mesmo chorando numa casa que não era dela e muito menos seu espaço, conseguiu escapar depois do fundo, pois caminhar é um não lugar. Falou, não teve jeito, mas estava ali convencida PRAQUELEBEIJO ser seu mundo, envolta pelos cabelos afogueados da menina do café, sentindo-a cada vez mais ereta e cada vez mais mulher; sua. Sabia que nenhum dos pensamentos sobre seu antigo companheiro tornaram-se fugitivos ou desceriam pelas águas que banhavam o asfalto, entretanto parecia ouvir algo possivelmente provido pelos pensamentos de Amanda; mas suas línguas lhe fazia esquecer, mesmo as reflexões sem soarem conversas, coincidentemente tangerem-se:
[...] Ao séquito de sinapses, [...]Labaredas em raízes ventriculares, deixo uma flor. escondidas por entre tuas pernas, Ao ar dentro de minha face, Minha outrora muda vida, meus restos. recai sobre teus mares. Ao teu cabelo, Mudo minha morada, sonar maior, sorrisos de estandarte. meu estriado ventrículo -esquerdo-. Arte de saber que, Aos teus dedos, acharia tua alma. macerantes dos medos meus, Certeza do acalento, boca a te procurar. amor em teus ombros. Ao teu sexo, Fina a chuva, nua fonte em lava de saliva, descansa[...] a trêmula alma[...] -Em teu olhar, reconforto-
O BEIJO Para.
As duas entreolham-se, percebem estar sozinhas. Não há mais ninguém na rua, muito menos na cidade e talvez o país esteja vazio. Hermeticamente isoladas protegidas por vidros enormes fechados com película proibida, onde nada pode alcançar nenhuma delas. Todos os movimentos, entre cantos e recônditos sentidos em cada centímetro de pele, a vida influir valsando com o vento pelos poros, sem que a velocidade do mundo interferisse nas curvaturas por onde elas se movimentavam dentro da cápsula de algodão cercada pelos vidros protetores. Os pensamentos em Otávio perecem, enquanto elas cada vez mais livres, não importando se algo acontecesse pois nada mais interessava. Poderiam alardear passeatas naquela rua, carros passariam com senhores olhando-as de esguelha e desfrutariam horas versificando prosas ilhargas a fim de enterrá-las, mas nada seria capaz de arrefecer tudo aquilo que acontecia naquela rua, no café com a parede da cor de malva onde Amanda repousava sua perna esquerda.
Matemática Erika sabia estar em horário de trabalho e tudo aquilo mesmo mágico seria passível de multas trabalhistas ou despejo, por isso então como se estivesse pronta para derrubar um pote de doces recém assados por sua mãe só por pura armação, toca no braço daquela que verá novamente em breve e se afasta um pouco. Enquanto memoriza todas as nuances do rosto dela, percebe que não existem mais preocupações e que tudo o que poderia olhar seria o caminho a se abrir em sua frente. Era sair com sua bicicleta atravessando aquele bairro pelas laterais da linha do trem, deslizando por saídas que jamais usaria para fugir da cidade, gritando aos ventos que soltaria sua voz nas estradas e já não poderia parar mesmo seu caminho de pedra, visto a canção de mesmo nome do bar não se romperia mais das lembranças desse dia; menos por infelicidade e mais por uma enorme coincidência, quis o rotear do mundo serem versos doídos cantados por Milton, entretanto, os desmandos do universo nesse caso soam bem avindos e aquelas flores caramelizando os gramados não nasceriam em nenhum outro dia deste século.
Ela aos poucos arremete à rua, mas deixa em sua amada o reflexo de seus lábios como bilhete passado por entre as carteiras no colégio. Amanda lhe sorri de volta, mesmo que agora ao final do encontro seus pensamentos ressoem uma pergunta incômoda sobre estar feliz de verdade e por um relance temporal consegue enxergar no limite da calçada ao final da rua, um homem e seu cachorro ainda em sombreamento indefinido.
Enquanto o plano se abre, todo o calçamento se revela aos olhos dela. O questionar-se, porém se torna mais ávido, suspeita ser impossível sentir essa felicidade desprovida de armadilhas e pensando bem eis que uma dessas investira violentamente sobre seu sossego, o que talvez até explique a ocorrência de violentas contrações das pálpebras, agora que americanamente seus olhos fecham da cabeça até a linha dos joelhos o homem descendo pela rua. Não haveria de ser ninguém além de Otávio, ainda mais se Amanda levasse em consideração a hora exata que o passeio acontecia naquele período do dia, algo metodicamente construído pelos longos trinta minutos de planejamento dele antes de sair, que era exato este agora, onde ornamentos palíndromos nas casas e árvores em caleidoscópio ofereciam o esverdeado necessário ao contraponto terra avermelhada da parede onde encosta sua perna esquerda, agora trêmula. Acordes prolongam-se e quase impossível entender onde é que a música está nesse momento, o violão nas mesmas sequências iniciais, as mesmas percussões no encordoamento, as mesmas notas exalando antecipação do primeiro verso, ou seria do segundo, mas, a distância, ouve uma orquestração o que indicaria que o refrão se aproximava tanto quando aquele homem que descia pelo calçamento alagado, forçando-a tensionar seus olhos ao avesso esperando sua passagem, ainda mais agora que descobriu a raça do cachorro ser igual de Otávio.
Era isso. A felicidade negada de forma tão primorosa que nem ao menos poderia esboçar uma reação enquanto ouvia os passos aconchegando-se pelas nervuras da rua. Absorve a punição do mundo, outra vez. Reflete por entre os lábios ainda tocados o perceber do corpo de Erika junto ao seu, revivência de todos os movimentos feitos naquela tarde, por entre o desbravar dos últimos resquícios de medo pelas águas, estas que junto ao homem que desce o calçamento parecem aos poucos demolirem o cimento. A questão a atordoava, estava feliz, era inegável, entretanto, poderia existir mensuração que provasse essa premissa, já que os olhos ainda eram impedidos pela alma de mirarem o homem a descer agora quase visível completamente. Ela estava feliz, era certeiro, com todo o envolvimento completo de seu novo amor, de forma tão oblíqua e tão presente sem a menor chance de desaparecimento, contudo, onde ela deveria encaixar toda essa melancolia que acompanhava tenebrosamente os passos do homem que trazia com ele pedaços arrancados de asfaltos nos pés, caminhando na direção dela enquanto impulsionava seus passos para trás, como um bailado do quase, deixando-a mais atordoada ainda. Ela estava feliz e como estava feliz, imaginando quanto os próximos encontros seriam cada vez mais intensos e o nascer lascívia por saber que Erika desejaria seu corpo em tudo aquilo que era. Por outro lado, não há entendimento dos motivos que levam sua língua petrificar por elaborações de medo diante daqueles passos que hora se aproximam, hora se desviam ou parecem anuviar, como se assim Amanda pudesse salvar sua alma da certeza do encontro com Otávio, que descia, segundo ela, em passos pares. Ela estava feliz, ponto, mesmo supostamente aquele homem em seu encalço arrancando pedaços das paredes das casas com violência de quem avista um alvo fixo, o que no fundo nada queria dizer pois fora ele a ir embora, ela não ordenou que jamais ficassem juntos, porque então deveria sentir qualquer tipo de reação contrária da indiferença, já que a culpa dessa ópera desastrosa não era dela. Estava feliz e isso bastava, entretanto, pensa ser prudente ligeiro comprometimento ser invocado, já que ainda floria amores esparsos a Otávio, o que provavelmente se comprovaria agora, visto que se aproximava a cada cadafalso que embutia em seus passos na direção dela. Os acordes profundamente perdidos nos destroços atirados na direção de Amanda, pelos pés britadeiras do homem que desce a calçada, são incapazes de definir se Nascimento cantará ou não, apenas existe um eco que assopra pequenos fonemas perdidos pelos cabelos dela, sem ser definido que sua atenção a faria reagir ou tentar perceber se as palavras enroscadas na sua franja são “vou seguindo pela vida”. Ouvindo o muro dissolver, pés aconchegando-se com uma segurança pavorosa, o asfalto sendo devorado pelo cachorro que descia salivando piche com aquele homem, todo o cenário pior seria que uma saraivada de balas ou os sermões de seu tio na Igreja quando ela aos poucos se tornava quem nasceu para ser, mas essa premissa era completamente incerta, já que Amanda tinha certeza que Otávio estava a dois passos não vistos, pois deixara cair em seu rosto os cabelos e fecha os olhos esperando apenas o cumprimento que iniciaria o processo de demolição de todas as convicções enquanto arrastaria seus olhos aos dele. Milton então a abraça, afirmando que Amanda já não quer mais a morte tem muito que viver. Tudo aquilo não era nada além de um último arrabalde de melancolia.
O cachorro, como seria de se esperar visto que nunca a viu, passou reto. O homem, que também jamais a conhecera, apenas fizera um gesto educado e seguiu seu caminho. Ela libera o peso de seu corpo quase totalmente na parede escarlate onde apoiava seu pé esquerdo. Um quase final de inverno acumula sinais por onde seus olhos singelamente marejados transpassam. O rosáceo azul do céu delimita um branquear das nuvens percorridas por percalços ventos esparsos, limítrofes verticalizados nas pontas dos prédios médios, que eram as permitidas construções naquela zona urbana vizinha da antiga ferrovia Noroeste do Brasil, agora fossilizada em suas dormentes pelo asfalto da rua Siron Franco, morada do bar Travessia, e paralelamente a Avenida São João, o monstro de asfalto em dissonância com o Elevado João Goulart. Edifícios de quatro ou seis andares do tempo em que o bairro era uma forma minimizada involutiva da colonização e subsequente bandeirismo do século dezoito, lugar onde a recém-formada burguesia proveniente da exploração territorial desenfreada do continente, sorvia das regalias homicidas da escravidão e do pombalismo, que executou o extermínio indígena de forma aterradora. Contudo, ali, naquele momento, perfazendo o papel de sopé do céu, eram tão maravilhosos quanto qualquer um dos beijos dados naquela tarde. Enfim a água por aparência inicial parecia terminar seu caminho pela inclinação da rua, o silêncio no meio fio era só quebrado pelo balançar de cerejeiras brancas avistadas em serenas meias dúzias no decorrer do calçamento, onde algumas de suas flores entardeciam em rasantes na distância de seus galhos nascedouros até os pneus de alguns carros que estacionados jaziam. Pedrarias do asfalto mínimas soltas sambando enquanto o movimento dos pés atravessa as duas faixas de pedestres que cercam o bar Travessia em suas esquinas, era bela a visão das bicicletas trazendo em seus aros jovens que apressados residiam em mochilas, cestas e cercados frontais, polinizando emancipação da alma por entre insistentes assassinos motores. O ônibus elétrico cotidiano deixando tilintares pelos fios como se Amanda recebesse pequenos telégrafos cerebrais lhe avisando que a vida enfim estava correndo ali, mostrando toda a existência imensurável do mundo rodopiando pelas suas artérias, explodindo em seus olhos como fogos, anunciando que ela ia querer amar de novo, visto que Milton ainda tinha seus braços ao redor dos seus enquanto maritacas marcam a entrada do relógio em duas horas derradeiras da tarde. Seus olhos então reluzem o marejar; sorri desfazendo-se da proteção da parede, retorna seus pensamentos ao beijo, adentra pela porta do bar. Enquanto caminha, volta seus olhos à rua, vê Nascimento lhe enviando um adeus, dizendo que se não der ela não vai sofrer, para logo depois dissolver-se nas flores da cerejeira em frente ao bar. Amanda tem a certeza qual o trecho da canção, deixa seu corpo fluir pelos primeiros ladrilhos da entrada do Travessia, as mãos perfazem leves estudos circulares seguindo os acordes e enquanto caminha, as tintas das paredes internas são salpicadas pelas flores das cerejeiras da rua que adentram ao espaço cintilando cores diversas, como ela, o dia e seu amor ao tocarem a tinta das paredes fazem com que destas se desloquem ângulos escalenos, desenhado claves com as cores das flores instilando-se na argamassa. Uma corola passa pela entrada e toca os joelhos de Amanda, que entende perfeitamente o sinal, a vida enfim estava posta, a sentia por toda extensão de sua pele na velocidade lenta do vento contornando os desvios de seu corpo, desvelando todo seu existir, finalmente dando lhe a certeza de que estava inteira sem ter que recorrer ao desamor para continuar tentando sobreviver; o coração sente a corola se aproximando, rebate os dissabores ditando signos rítmicos do enfim a felicidade instalar-se como um corpo estraçalhado por estilhaços que encontra um berçário de bálsamo, sossegadamente deitando-se no aconchego de um colo de domingo, sonhando como um sorriso largo solta-se tão sorrateiramente quando se pensa em suspiros alívios do saber amar e de se estar viva para sentir tudo isso. As pétalas em conjunto aconchegam Amanda como um berço, nascem então olhos d’água do chão em cinco pontos dentro do bar, formando linhas de pequenos rios que florescem em direção ao teto percorrendo o trajeto em lentor; todas as paredes do Travessia agora tomam-se, até a metade de sua extensão, de um tom avermelhado veemente. Essa cor forma um retângulo que descreve seu tamanho por dois terços da altura total dos septos de argamassa e ao longo desse comprimento formam-se subdivisões na geometria inicial, criando então uma escala de retângulos, onde o localizado mais próximo ao solo é da cor dos cabelos de Amanda e os outros tem adições da cor preta em progressão aritmética, no segundo uma quantidade, no terceiro duas e no quarto retângulo, três; formando assim tonalidades distintas por todo tamanho da figura, onde se veem filetes arroxeados misturando-se de maneira leve ao organograma de cores; linhas mais fortes desaparecem acima do retângulo de Weber-Fechner, formando, com a cor arroxeada que recobre o resto das paredes até o teto, um horizonte. Os pés de Amanda ecoam um salto, ela então amalgama a corola em seu corpo agora suspenso no ar, que emite uma coloração rosácea. Levita um pouco mais alto e atrás dela uma coluna composta de um menor tom do mesmo vermelho retangular do bar se ergue, transpassada por linhas verdes mais largas que os filetes rios das paredes, em tamanhos assimétricos verticais formando imagens consecutivas de contraste óptico, fazendo com que nesta coluna seja possível enxergar no centro elíptico dela um círculo de contorno cinza atenuado, onde se vê o vermelho ganhando cor, porém perdendo luminosidade ao verde. As duas colunas tornam-se em sua totalidade paralelas aos olhos d’água. Seu corpo começa um girar vagaroso enquanto as letras da última linha da canção acalentam o voo dando a certeza de que Amanda faz seu viver e já não sonha apenas. Um transe pacífico em elipses formadas por suspiros longos como um mantra, o reverso de todo ruído branco do lado de fora do Travessia; finalmente os passos de uma complexa equação obsessiva qual fora submetida nunca mais a assombrariam, poderia enfim olhar a paisagem que certamente se mostraria, enquanto livre seus passos caminhariam na direção do não lugar, onde completa enfim repousará no acalanto mar daquela mulher. Em suspensão como ser pleno, pela vida que fez definitiva morada enquanto o amor finalmente toma por inteiro seu corpo, onde o tempo…
FIM
Levitação
FRANCO, Siron. 1947. Óleo sobre tela.
Nota: o conto é parte de um esboço de livro que comecei durante as aulas da pós e que ficou em segundo plano por conta da urgência em contar uma outra história. Os livros de poesia estão em processo de reescritura, então tudo anda mais devagar.